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sábado, 29 de maio de 2010

Trabalho de português sobre o “Memorial do Convento” de José Saramago/Personagens, narrador e narratório

PERSONAGENS

No romance, há dois tipos de personagens distintos: as históricas e as ficcionais. Saramago pretende evidenciar dois tipos de vivências humanas: uma, em que os homens se servem dos seus semelhantes para atingir determinados objectivos; outra, em que os homens se servem dos próprios meios para alcançar esses mesmos fins. Tal facto está ao serviço da intenção do autor, que pretende fazer a análise das condições sociais, morais e económicas da corte e do povo. Os dois tipos de personagens, as histórias e as ficcionais – cuja caracterização é predominantemente indirecta e psicológica – convivem em simultâneo, sendo a intenção narrador, ao apresentar duas vivências antagónicas, desmascarar injustiças sociais quase sempre negligenciadas pela História ao longo do tempo.

As personagens históricas pertencem a uma classe social privilegiada (nobreza/clero) que vive a seu belo prazer, menosprezando os interesses do povo:

o D. João V – rei de Portugal. De carácter vaidoso, magnificente e megalómano pretende deixar uma obra que ateste a grandeza da sua riqueza e do seu poder, ainda que para tal se tenha de sacrificar o povo. A caracterização do rei é feita predominantemente através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos – de modo indirecto.

o D. Maria Ana Josefa – oriunda da Áustria, a rainha revela-se extremamente devota e submissa, cujo papel se resume basicamente a dar herdeiros ao rei.

o A infanta D. Maria Bárbara – filha primogénita do casal real. Tem cara de lua cheia, é bexigosa e feia, mas boa rapariga. Casa aos 17 anos com o infante D. Fernando de Espanha, pelo que não chega sequer a ver o convento erigido em honra do seu nascimento.

o O infante D. Francisco – irmão de D. João V. é um homem sem escrúpulos que cobiça o trono e a esposa do rei, bem como se entretém a provar a sua boa pontaria de espingarda nos marinheiros que estão nos barcos ancorados no Tejo.

o Domenico Scarlatti – músico italiano. É um homem de completa figura, rosto comprido, boca larga e firme, olhos afastados. Foi contratado para dar lições de música à infanta D. Maria Bárbara. Também ele partilha o segredo da construção da “passarola”, deslocando-se várias vezes à quinta do duque de Aveiro onde toca cravo para gáudio dos presentes.

o João Frederico Ludovice – arquitecto alemão, contratado para construir o convento de Mafra que sabe que uma vida, para ser bem sucedida, haverá de ser conciliadora, sobretudo por quem a viva entre os degraus do altar e os degraus do trono.

o O padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão – Figura que tem fundamento histórico. Imbuído de um espírito aberto e despreconceituoso, movimenta-se na corte e na academia de Coimbra. Acalenta o sonho de um dia voar, daí o seu projecto da “passarola”, apoiado por el-rei D. João V de quem é amigo. Mantém, do mesmo modo, laços de profunda amizade com Baltasar e Blimunda, que o ajudam na construção da “máquina voadora”, e com quem, segundo as suas palavras, forma uma trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito Santo. Transtornado com a perseguição da Inquisição, refugia-se em Toledo, onde acaba por falecer.

Na caracterização das personagens pertencentes a este grupo, há, quase sempre, um tom depreciativo e irónico que marca o distanciamento temporal e, sobretudo, afectivo do narrador.

Pelo contrário, a caracterização das personagens ficcionais, a quem o narrador confere maior destaque, reveste-se de um tom francamente positivo e valorativo, tanto mais que pertencem na sua maioria a um grupo social desfavorecido e, muitas vezes, explorado/oprimido pelas classes do poder.

o Baltasar Mateus – de alcunha, o sete-sóis, esteve na guerra de sucessão de Espanha, durante quatro anos, da qual foi dispensado por ter perdido a mão esquerda em combate. De regresso, a Lisboa conhece num, auto-de-fé, Blimunda, a quem se liga amorosa e espiritualmente. A convite do padre Bartolomeu Lourenço, ajuda a construir a “passarola”, sonho que passa também a ser seu. Mais tarde, trabalha nas obras do convento de Mafra, como servente. Após a morte do padre, zela pela preservação da “máquina voadora” e, um dia, por descuido, é levado ao acaso, acabando por ser queimado 9 anos depois num auto-de-fé pela Inquisição. Trata-se de um homem do povo, analfabeto e humilde, que aceita a vida tal como esta se lhe apresenta.

o Blimunda de Jesus – uma mulher do povo, a quem o padre Bartolomeu Lourenço, baptiza de “sete-Luas”. Vive um amor apaixonado, franco e leal com Baltasar. Tem o dom de, em jejum, ver o interior das pessoas e das coisas, o que lhe permite recolher as duas mil “vontades” indispensável para a “passarola” voar. Detentora de grande densidade psicológica e de uma perseverança sem limites, procura “o seu homem” durante nove anos, unindo-se ao mesmo numa comunhão espiritual ao resgatar a sua “vontade” quando finalmente o reencontra num auto-de-fé em que este está a ser queimado no fogo da Inquisição… O nome de Blimunda, estranho e raro tal como a personagem que o veste, teria surgido ao narrador, talvez pela musicalidade que ele encerra ou pela magia das suas três sílabas, símbolo da perfeição. Esta figura representa a força que permite ao povo a sua sobrevivência, assim como contestar o poder e resistir.

o Sebastiana Maria de Jesus – mãe de Blimunda, um quarto de cristã-nova condenada a ser açoitada em público e ao degredo por ter “visões e revelações”.

o Marta Maria – mãe de Baltasar, é quem recebe o “filho pródigo” e Blimunda em sua casa, quando estes vão pela primeira vez juntos a Mafra.

o João Francisco ¬ – pai de Baltasar. Homem do povo cuja subsistência reside na agricultura.

o Inês Antónia – irmã de Baltasar, mãe de dois filhos, que sofre a morte do rapaz mais novo, com pouco mais de dois anos.

o Álvaro Diogo – homem do povo e antigo soldado com quem Baltasar trava amizade ao chegar a Lisboa.

o Os trabalhadores do convento – personagem colectiva, cuja “força bruta” e esforço desmedido são explorados de forma desumana.


O povo em geral – massa anónima tantas vezes subestimada e esquecida pela História – é apresentado como o verdadeiro herói, na medida em que foi à custa do seu sacrifício, e muitas vezes da própria morte, que se tornou possível a edificação do megalómano convento. Saramago sentiu a necessidade de repensar os acontecimentos e as figuras à luz de uma nova realidade criada no presente e que tem implicações na construção de valores sociais futuros.


NARRADOR

Em Memorial do Convento é maioritariamente heterodiegético, quanto à presença, e omnisciente, quanto à ciência/focalização. No que respeita à sua posição profere juízos de valor, opiniões, comentários e divagações pelo que, neste caso, é subjectivo.

Há, no entanto, momentos em que o narrador empresta a sua “voz” a diversas personagens, adoptando deste modo o seu ponto de vista (focalização interna).

O estatuto do narrador assume, por vezes, atitudes aparentemente contraditórias: por um lado, há uma tentativa de aproximação à época retratada não só através da reconstituição do ambiente vivido, mas também do vocabulário usado; e, por outro lado, há um distanciamento do narrador, perceptível no recurso a prolepses, à ironia e a uma actualização ao nível da linguagem. (por exemplo, a narração do cerimonial respeitante aos encontros sexuais entre o rei e a rainha, apesar de retratar o ritual próprio da época, reveste-se de extrema ironia, o que evidencia um narrador distanciado do tempo histórico apresentado.

No que diz respeito a actualizações ao nível do vocabulário, o narrador não só utiliza termos usado num tempo posterior ao da diegese, como os que se prendem com a aviação; mas também procura explicitar conceitos que, na actualidade, sofreram alterações como é o caso da denominação das refeições: passou a manhã, foi a hora de jantar, que é este o nome da refeição do meio-dia, não esqueçamos.

Trata-se, assim, de um narrador que se movimenta entre o passado, o presente e o futuro; detentor de um vasto conhecimento que lhe permite controlar a acção e as personagens.

NARRATÁRIO

O narratário surge no interior da narrativa, como entidade fictícia, a quem o narrador se dirige, explícita ou implicitamente. É, portanto, o destinatário da mensagem do narrador.

Ao longo do romance, há momentos em que transparece a ideia de que o narrador participa na acção, e outros em que o narrador envolve igualmente um tu, através do uso da primeira pessoa do plural que ora assume contornos de um eu nacional e/ou colectivo ora se trata claramente de uma interpelação a um narratário a quem dirige a sua mensagem.

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